sábado, 25 de agosto de 2007

Alienação...

O que acontecia no Coliseu Romano com os vencidos era algo que, mesmo passado tanto tempo, intriga e provoca. Os eventos tinham como atração principal a matança dos gladiadores vencidos e, por uma estranha razão, amorteciam as revoltas! Quando vociferamos nos espetáculos esportivos com os vitoriosos Bernadinhos, Ronaldinhos e Ricardinhos, de uma forma ou de outra, retomamos, quase sem querer, àqueles tempos em que os oprimidos "viviam" uma alienação tão brutal, que fazia com que os pobres miseráveis torcessem para que outros pobres miseráveis se destruíssem, e aguardavam ansiosamente que o dedo polegar do imperador se voltasse para baixo, sacramentando a morte do derrotado! O que aproxima os dois "mundos" é o sentimento de vitória, embora o miserável romano, diferente do miserável brasileiro que tem a morte metafórica do vencido, conseguia ver as vísceras expostas do perdedor bem ali embaixo do seu nariz e se deliciava com o cheiro de sangue derramado!
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Estávamos eu e minha filha conversando sobre o que é ser torcedor, logo após um jogo a que fomos e que nosso time saiu derrotado! Nossa atenção foi atraída para uns torcedores que lentamente enrolavam suas bandeiras para guardá-las para a próxima partida. Sem preconceito, pelo menos aparente, ficamos traçando o perfil desses sujeitos que estão em todas as partidas, faça chuva, faça sol, e são sempre os primeiros a chegar e sempre os últimos a sair. Naquele dia, a partida fora à noite, por isso, parte do tempo em que guardavam as bandeiras era às escuras, a direção do estádio apagara os principais refletores! Estes sujeitos, geralmente, são sub-empregados, ganham uma ninharia e nem sempre têm carteira assinada. O mais interessante é que esses abnegados gastam os seus parcos "vinténs" para ver seu time, mesmo que, às vezes, sacrifiquem sua própria sobrevivênvia por essa estranha paixão!
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Faz alguns anos, voltava eu da casa de uma amiga, depois de uma grande vitória da seleção da Nike, digo, brasileira, na copa do mundo, quando desabou uma chuva torrencial e, em meio a ela, apareceu um cidadão que não saberia precisar a idade já que, às vezes, as aparências enganam, principalmente quando se trata de nordestino. Este era filho do Estado de Sergipe. Pediu-me ele que o levasse até um ponto difícil de se perceber no meio daquele chuvarada toda. A primeira surpresa: em seus braços estava uma criança que talvez tivesse um ano, um pouco mais, um pouco menos, o que posso afirmar é que ainda era criança de colo! O agasalho que eu tinha era uma sombrinha velha que mal cabia a mim, mas mesmo assim ele se aproximou e fomos os três ao lugar que ele apontava. Minha preocupação era evitar que a criança se molhasse e a consequência do ato foi que nos molhamos eu e o pai dela! Dissera que saíra para pegar alimento! Quando vi o lugar que ele indicou que a criança dormiria, quase "desabei"! Era um pedaço de papelão sob uma marquise de um pequeno mercadinho! Ao nos despedirmos, desejei-lhe um "tudo de bom". Sei que é a frase mais tola, patética e fora de propósito que poderia ter dito, mas naquele momento, por mais que tentasse não conseguiria dizer outra coisa, evitei cair na costumeira armadilha hipócrita dos "beija-flores" que acolhem no seu seio uns pobres miseráveis e bradam felizes que fizeram a sua parte, ah, que maravilha seria se todos fizessem como eles!
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As três situações têm em comum, além do espetáculo esportivo, se é que podemos dizer que a matança dos gladiadores no Coliseu, possa ser chamada de esporte, a miserabilidade dos indivíduos que torcem, vibram, gritam pelo gladiador favorito, time, seleção, mesmo que em alguns momentos, sua situação seja das piores, não tenham nem o mínimo necessário, mas não importa, a alienação os torna vitoriosos, porque acima de tudo está a paixão! Os mais exaltados dirão que sempre haverá pobres no mundo e que casos como estes acontecem em todos os rincões e podem usar a questão do panis et circenses como argumento irrefutável, ou seja, em todos os tempos e lugares os oprimidos esmagam os oprimidos usando o discurso do opressor! A alienação permite achar natural aquilo que é histórico. Se não fosse assim, perderíamos a chance de treinar a nossa hipocrisia solidária ano após ano, na hora de discar aqueles números indefectíveis daquele programa que há mais de 22 anos, faz o papel do Estado através de uma "política pública" e salva da pobreza as miseráveis criancinhas brasileiras...

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