sexta-feira, 18 de setembro de 2015

O camelô e o cirurgião II...

Fiquei esperando mais contribuições referentes às questões formuladas no parágrafo final da parte I, dessa crônica, porém os que se manifestaram não perderam de vista que o nosso vendedor de rua era um sujeito que gostava de "presentear" velhos "conhecidos"; fora chamado de trapaceiro, espertalhão e outros adjetivos desabonadores, houve até insinuação de que fosse gatuno e/ou ladrão, coisa que, é preciso que se diga, ele não é! Sim, não se esqueça que, em troca dos meus vinte reais, ele me deu duas latas de pomada de presente(não, não ria, por favor!). Caso você seja mais exigente, vendeu-me duas porções de placebo, vai que acredito na força das palavras? Ou você nunca ouviu alguém dizer: "essa palavra tem poder"? Quantas e quantas vezes já não escutou: "não repita o nome da pelada(desgraça), ela traz mau agouro!" Usando da mesma premissa, quem poderia negar que as ditas pelo camelô não teriam o poder de realizar os milagres prometidos? Quem não gostaria de fazer amor a noite inteira e parte do dia seguinte, sem parar, e o que é melhor, sem nenhum efeito colateral?
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É improvável que haja amizade desinteressada entre prestadores de serviços, quem acredita nesta possibilidade pode ficar muito decepcionado, relações em que o dinheiro está mediando mexem com o caráter dos indivíduos, ou, talvez, quem menos seja ético seja aquele que fala de ética. Inadvertidamente, o velho professor, mesmo sabendo que o lucro é que move a relação entre as mercadorias, preferiu se enganar, continuando a acreditar que ainda temos alguma salvação. Na realidade, o periodontista com seu argumentum ad nauseam o convencera que os dois eram mais que apenas paciente e cliente, era sim possível que fossem amigos, afinal, não se entrega a saúde a quem só pensa objetivamente, a quem não se envolve com o que acontece com o cliente para além do consultório! Uma das muitas provas de que não era mentira a estima entre os dois, residia no fato de que o atendimento do cirurgião era só as quintas-feiras, mas para o amigo, era só ligar que aquele daria um jeito de atendê-lo em horário a combinar, afinal, amigos são para essas coisas também.
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Vivemos tempos tão difíceis que queremos acreditar que o impossível é possível, por obra e graça do Espírito Santo, porque "às vezes parecia que era só acreditar." O cirurgião dentista também queria o que todo e qualquer profissional liberal deseja, muito antes de começar os primeiros estudos na graduação, a parte que lhe cabe neste latifúndio! contudo seu intuito era fazer o velho professor acreditar que eram amigos e em função disso, as questões econômicas estavam em segundo plano. O tratamento demandava uma viagem de 360 km e mais alguns reais para esse deslocamento. O periodontista se dizia lisonjeado pela escolha dos seus serviços e fazia o outro acreditar que isso só reforçava a amizade entre ambos.
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Chegado o dia da consulta, esquecera qual o andar e o valor. Ligou. A atendente, que não se chamava Judith, detalhou minuciosamente como chegar e quanto deveria pagar, estranhou a quantia, a princípio, porque pagara quase duas vezes na sessão anterior o valor anunciado por ela! Enfim, no horário marcado, depois de uma viagem de mais de 6 horas montado no ônibus, chegou ao consultório e foi recebido com um sorriso largo e um caloroso aperto de mão, pelo amigo cirurgião! Na verdade, já dissera para si mesmo que aquela era sua última consulta a partir do momento em que a secretária dissera quanto os outros clientes que não eram amigo pagavam! Ficara se perguntando se o amigo periodontista cobraria o preço que todos pagavam ou seria cínico a ponto de reafirmar o valor da sessão superfaturada, sem demonstrar qualquer constrangimento!
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Terminado o tratamento, entabularam uma conversa amistosa, foi quando o cirurgião afirmou que tinha ficado muito sentido por não ter sido avisado do nascimento do filho do amigo. Em outra época, teria ficado vexado com o esquecimento, mas como o valor da consulta não lhe saía da cabeça, tentou disfarçar, embora essa não fosse uma tarefa fácil, queria pagar e desaparecer o mais rápido possível. Sem perda de tempo, perguntou qual o valor, na verdade, talvez seja "moda", mas todos os profissionais de saúde visitados recentemente, só quiseram receber em dinheiro vivo, cartão é coisa do passado, plano de saúde nem pensar!  Quando o periodontista falou quanto deveria lhe pagar (quase três vezes o valor que o amigo cobrava dos que não faziam parte do ser círculo de amizade), a secretária estava às suas costas e os seus olhos se cruzaram com os meus, já combalidos e envergonhados, constrangimento pouco é bobagem! Não sabia se continuava fitando os olhos da moça ou se olhava para o vazio, o que não conseguia era enxergar o sujeito que estava a minha frente. Seria ele um cínico usurpador? Desonesto? Espertalhão? Gatuno? Ladrão? Qual dos adjetivos se encaixa melhor ao perfil do dentista amigo? Dos dois personagens dessa crônica, em quem você confiaria? No camelô que me "presenteou" com um "viagra" em forma de pomada ou no periodontista que de forma acintosa triplicou o valor da consulta?...  

quinta-feira, 10 de setembro de 2015

O camelô e o cirurgião I...

Percebe-se que camelô já não é um termo tão comum como nos meus tempos de criança pequena, nas ruas de paralelepípedos do bairro da Liberdade, em Salvador. Hoje, vendedor ambulante soa mais "natural", embora no cotidiano perca o substantivo e o adjetivo passa a ser seu nome de guerra! Vivemos tempos em que muitos querem ganhar no "grito" e nada como a figura do trabalhador informal para tornar isso algo concreto! O número de espertos que quer se dar bem cresce em proporção geométrica, estão aí as operações da Polícia Federal que não me deixam mentir, a ideia é ganhar um troco em cima dos trouxas, dos desprevenidos, daqueles que ainda acham que temos salvação!
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Véspera de feriado prolongado, o sujeito não queria comprar nenhuma bugiganga, o único desejo era voltar para casa e, para que isso acontecesse, era necessário atravessar "aquela" passarela carregada de ambulantes por todos os lados. O que não esperava era que um deles o abordasse usando justamente o substantivo/adjetivo que ele utilizava normalmente quando se referia a alguém, seria coincidência ou aquele camelô realmente o conhecia? Professor? Mesmo tendo dirigido o olhar para o chamamento, continuou sua trajetória. O ambulante ao perceber que mesmo utilizando aquele artifício não fora "reconhecido", apelou para um: "eu sou irmão de fulano!" Claro que continuou sem lembrar, mas também não poderia afirmar categoricamente que o sujeito mentia. A pergunta seguinte era uma armadilha, que o velho professor não soube evitar. "Está morando onde agora?" Pronto, o cara deveria conhecê-lo, porque a resposta, seja qual fosse, abria brecha para uma suposta afetividade! Sem que lhe perguntasse afirmou que vendia óculos mostrando uma infinidade deles sobre uma banca! Quando percebeu que não houve qualquer interesse pelo produto anunciado, tirou não se sabe de onde uma latinha de pomada igual às ilustradas na foto acima, embora não tivesse nenhuma noção, começava ali a via crucis do nosso professor!
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Mais que rapidamente, nosso ambulante se transformou em um "doutor" de causar inveja a qualquer um daqueles que fazem parte do Projeto "Mais Médicos" do governo federal! Falava com muita segurança e propriedade sobre o caráter terapêutico do medicamento, inclusive, detalhando quais eram as doenças que a pomada exterminava: brotoeja, eritema, eczema, urticária, verruga, herpes, entre outras! A expressão do seu interlocutor deve ter lhe revelado o grau de desinteresse na compra e/ou utilização do tal medicamento. Mas o cara, igual a todo brasileiro, não desistiu e retirou o último coelho da cartola, seu último cartucho. Dissera que gostava muito do professor e por isso daria de presente a pomada sem nenhum custo! Que contrassenso era aquele? Não existe almoço grátis e promoção em quem tem o lucro como alvo não passa de tapeação, o famoso engana trouxa, diria minha avó! O constrangimento já tinha se instalado há tempos por isso o  velho professor mais que depressa queria sair dali, mas o camelô não permitiu qualquer saída antecipada, imediatamente retirou outra latinha, mais uma vez não deu para perceber de onde e, mais que rapidamente, abandonou o jaleco de dermatologista, incorporando o de urologista no momento seguinte! Agora a pomada servia para ampliar o prazer sexual, seu uso nas horas de lazer possibilitava que se fizesse amor a noite inteira sem parar até a manhã seguinte, e desse "viagra" era fornecedor exclusivo!
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Logo em seguida, colocou as duas latas num envelope e afirmou que era mais um brinde, não precisava pagar absolutamente nada! Não, aquilo não estava acontecendo, era surreal, nosso personagem recebera duas consultas médicas, sem hora marcada, sem filas, sem atraso, sem precisar acordar 4:00 da madrugada para consegui a senha 97, num país em que saúde é sinônimo de descaso. A conversa já beirava o nonsense, e, mais do que nunca, o incauto "paciente" queria deixar aquele consultório a céu aberto e desaparecer! Pensou que bastava receber o envelope das mãos do "médico" e tudo estaria resolvido, acabaria, enfim, o pesadelo! Ledo engano, ainda faltava algo para terminar com aquele circo de horrores. Quando as "amostras grátis" estavam se preparando para mudar de mãos, o paciente ouviu as palavras que programas do tipo "criança esperança", que fazem filantropia com o dinheiro dos outros, costumam atirar na cara da audiência: "dê quanto puder só para me ajudar, embora uma dessas na farmácia custe R$26,00!" Espera aí, não era presente? E a representação exclusiva? O "quanto puder" representava quanto? Já receoso, nosso amigo abriu a carteira e tirou $10,00, porém o médico camelô alertou: "na farmácia Santana só uma custa...!" Na carteira, cujos olhos do ambulante doutor já tinham devassado, só restavam mais $18,00; meio que sem graça entregou mais dez, mas percebeu que o médico não ficara muito satisfeito. Não se sabe a razão de não as ter tomado de volta! Se você que está lendo essas linhas observar as duas latinhas lá em cima na foto introdutória, vai verificar que são idênticas em tudo, infelizmente, você não pode perceber o aroma, mas posso lhe adiantar que são inodoras!  Foi um assalto? O velho professor foi descaradamente roubado? Deveria chamar um policial e dizer que foi coagido e exigir ressarcimento e prisão do "médico"? O que você recomendaria?... 

domingo, 6 de setembro de 2015

As aparências enganam...

Qual é o tamanho do seu preconceito? Você consegue afirmar categoricamente que não padece desse "desvio" moral? Analisando-se agora é bem provável que esteja dizendo: "não, não padeço dessa inumanidade, tenho até vários amigos entre os que discutem as questões de gênero! Ora, quem em sã consciência vai assumir que é preconceituoso, ainda que o discurso esteja encharcado dele? Ficamos na superfície, no aparente e nos apressamos em soltar um: "não, eu não sou preconceituoso, basta observar as minhas atitudes, a forma como eu trato as mulheres, mesmo aquelas desprovidas de beleza!" Lembrei-me agora de um dos muitos dias vividos no período da graduação, na "velha" e querida UFBA; estando numa roda de amigos, uma querida muito simpática, ao ver minha tatoo estampada no braço, vociferou: "eu não faria de modo algum uma tatuagem! Não deixaria meu corpo marcado com algo tão..." não conseguiu concluir o que seria o "algo tão"! 
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Sinceramente, não percebi nenhum desdém em sua voz, quiçá um certo despeito pela minha "ousadia", eu era calouro! Perguntei-lhe se era preconceituosa, sem pestanejar respondeu: "claro que não!" Minha compreensão, naquele momento, era que esse "marcar" nada mais era que sujar sua pele. "Sem contar o risco que você corre." De forma sarcástica lhe perguntei: "esse 'você' sou eu ou você?" "Estou me referindo a você, não que seja preconceituosa, como já disse antes, porém se imagine numa rua deserta vindo alguém, em sua direção, além de ser negra, com uma tatuagem, você não ficaria com receio de passar por perto? Acho que atitudes como a sua só reforçam o estereótipo, entende?"

Pelo que entendi, ser preto e tatuado era algo inconcebível, agindo assim não ajudava em nada a "causa" dos negros, deveria extirpar a tatoo e, quem sabe, tornar-me um pouco menos preto, assim não correria nenhum risco de ser confundido numa rua deserta!? Fiquei me perguntando quantos de nós pensam de forma exatamente igual a essa figura, mas que negam em alto e bom som que não têm qualquer tipo de preconceito? Inclua aí aqueles que dizem que não faz qualquer tipo de discriminação, tanto assim que têm amigos gays, gordos, baixos, feios, pretos!?
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Essas questões me vieram de forma inocente, na verdade, caminhava meio disperso pela rua, indo fazer mais uma sessão de minha "maori" quando, de repente, uma "amiga" me saudou de forma calorosa: "como vai, corredor?" Aliás, às vezes, passo pelas pessoas frente a frente e não as vejo, razão pela qual, muitas me adjetivam de marrento, tirado ou outros qualificativos menos nobres, não finjo que não as vejo, mas ninguém acredita. Bem, é preciso dizer que há ocasiões que finjo mesmo! Voltando a amiga corredora, a inesperada saudação me assustou um pouco, mesmo porque depois de mais de um mês sem correr já não sabia se aquele substantivo/adjetivo me pertencia! Ela me perguntou por que nunca mais tinha me visto correndo. Expliquei a razão que me afastara das ruas por mais de um mês. Mostrou certo pesar sincero pelo meu sofrimento; estar sem correr é insuportável, ainda que esteja suportando a duras penas a privação dessa droga. Jurara que tudo ia dar certo e que muito em breve estaria de novo correndo, oxalá, disse eu, como diriam os gregos!

Quando foi embora, fiquei pensando como as aparências nos enganam; no meio da conversa, na tentativa de levantar minha autoestima, ela dissera que era visível que deixara de fazer minha corrida diária, notava-se que estava "um pouquinho mais gordo!" Que coisa interessante, não? Ainda que seja lugar comum as pessoas acharem que engordamos ou emagrecemos quando ficam algum tempo sem nos ver, porém fazer associação direta com a falta de atividade física é que me chamou mais atenção, isso é típico daqueles que se autodenominam "educadores físicos." Pela fama que a corrida tem no emagrecimento, é óbvio que sua ausência acarreta um aumento na massa corpórea, não é mesmo? Contudo neste período de sedentarismo forçado e aborrecido, por estranha ironia, perdi 3 quilos! É isso mesmo, estou mais magro, mesmo sem estar fazendo qualquer atividade física sistematizada, vejam como algo tão simples traz à tona nossos mais arraigados estereótipos, é assim com os nossos preconceitos, as aparências enganam e muito...