sábado, 30 de abril de 2011

Sobressaltos e medo...

Não é preciso ser muito observador para perceber que a vida nas grandes cidades (como também nas pequenas e médias) não tem sido nada fácil. É pura barbárie e o mais estranho é que estamos (quase) nos acostumando com ela! Nada nos surpreende mais! A filha mata os pais por causa de grana; os pais matam a filha jogando-a do alto do edifício, sem nenhuma explicação ou remorso; a mãe atira o bebê na lata do lixo ou no riacho, o lugar tanto faz, assim como as justificativas! A gente pedindo vingança fingindo pedir justiça, tem que ser olho por olho, dente por dente! E a violência vai se aninhando em nossos braços, tornando-se nossa companheira em todos os segundos do dia, as veias estão abertas e não são apenas as da América Latina. Será que no meio dessa sordidez ainda há lugar para a poesia?
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Naquele santo dia, como se fosse uma premonição, uma pachorra me perseguia, não vou dizer que era grande, mas era significativa! Há momentos que deixar a tranquilidade de casa e encarar os "ruídos" da rua não é nada animador, porém em certas ocasiões, nem adianta se recusar, com certeza, vão lhe convencer que a melhor coisa a ser feita é estar no meio do burburinho! A propósito, é preciso que se diga, para que não haja "represálias", que a companhia era por demais interessante, ainda que o namoro com a fleuma não me permitisse querer qualquer outra coisa que não fosse ficar estendido na rede, no entanto, fui "facilmente" convencido (parece um oximoro, não é?) e lá fomos nós como dois enamorados iluminados pelo manto da noite azul!
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No meio do caminho não tinha uma pedra, perdoe-me Drummond por colocá-lo neste imbróglio. Havia uma necessidade prosaica: retirar dinheiro no caixa eletrônico para despesas comezinhas. Não sei se em todo lugar é chamada assim, por aqui é conhecida como "saidinha bancária" aquele tipo de assalto em que um dos meliantes fica dentro da agência e "marca" quem deve ser "abordado". Como o celular é um grande aliado dos patifes seu uso está proibido no interior das agências, mas os velhacos têm usado de outros meios e/ou subterfúgios! Se nas agências é difícil monitorar, imagina retirar dinheiro em lugares de intenso movimento como rodoviárias e afins? Na realidade, foi o que fizemos, sacamos um dinheirinho provavelmente sendo observados por mil olhos, e partimos  brincando tranquilos e despreocupados.
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Não sei dizer se fomos seguidos, o que não podemos esquecer é que ladrão tem a arte de belzebu! Estávamos próximos do prédio, faltavam apenas uma passarela, muito movimentada por sinal, e um pequeno trecho até a portaria do condomínio, a princípio, nada que causasse medo. Tudo parecia tão calmo que até pensei em me despedir ali mesmo, já que teria que fazer todo o trajeto de volta sozinho e (para que negar?) o medo me assaltava! Fui convencido, de novo, muito "facilmente", a deixá-la em casa. Sempre dissera à menina dos olhos de avelã que, seja qual for o lugar em que estivesse circulando, não esquecesse jamais de esquadrinhar todo o entorno, ou seja, fazer um mapeamento do lugar onde estava, analisando o grau de periculosidade visando antecipar qualquer armadilha, o perigo mora ao lado!
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Faltando alguns metros da portaria o quadro inteiro mudou! Havia uma ladeira com uma curva que impedia perceber quem vinha do lado de cima, aquilo que eu chamo de ponto cego! Lugares onde é possível alguém se esconder sem ser notado surpreendendo o incauto. Um calafrio percorreu minha espinha porque além de tudo a lâmpada do poste era daquela que emite luz amarela, ou seja, ilumina uns pontos e deixa outros sem luz! Mais que de repente vejo sorrateiramente uma motocicleta parar com dois sujeitos, um fica com o rosto coberto pela viseira do capacete, o outro desce e vem em nossa direção. Neste ínterim, meus olhos chocam-se com os do ordinário, fazendo-o antecipar a ação antes do que planejara, ou seja, havia ainda muito espaço entre nós e os vagabundos! "Nós só queremos o aparelho", foi a frase proferida! Numa fração de segundos, pude vê-lo levantar parte da camisa segurando o revólver! Não pensei duas vezes, peguei o braço da menina dos olhos brilhantes e sai em desabalada correria, sem imaginar o quão perigosa era aquela ação, reagia por mero instinto, não pensara em nada naquela hora. Sei muito bem que poderíamos ter sido alvejados pelas costas, mas nada garante que isso não aconteceria se nós entregássemos apenas os celulares! 
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Os dias posteriores foram de muitos sobressaltos e medo. As imagens viam e voltavam com uma intensidade avassaladora. Uma receio imenso de trafegar pela cidade; se todos já eram suspeitos, depois do ocorrido isso se tornou uma obsessão. Vivemos acuados e desesperançados! A angústia me acompanhou infinitos dias, parte das vezes, por saber que minha reação poderia ter tirado o brilho dos olhos cor de avelã da menina maluquinhaapenas, por causa de dois celulares! Se somos todos contra todos, neste caso, será que no meio dessa sordidez ainda há lugar para a poesia? O poeta Russo, sempre vivo, responde de forma singela mostrando as luzes de A Via Láctea
Queria ser como os outros
E rir das desgraças da vida
Ou fingir estar sempre bem
Ver a leveza
Das coisas com humor...
Mas não me diga isso...
É só hoje e isso passa
Só me deixe aqui quieto
Isso passa
Amanhã é um outro dia
Não é?...