terça-feira, 27 de outubro de 2009

Espelho...*


Todos os dias, impreterivelmente, às 7:00 horas, despedia-se da mulher de forma calorosa e saía para trabalhar, tendo a tarefa de levar o filho e deixá-lo na escola.  Era delicioso ter o menino ali ao seu lado e, ao mesmo tempo, perceber como o piá estava crescendo rapidamente, aliás, não é esse o grande medo de todos os pais: saber que os filhos um dia terão suas próprias asas? Esta é uma relação das mais contraditórias: desejam ardentemente que os filhos cresçam, mas, no íntimo, não é isso que querem, deseja-os eternamente crianças! Mas quem foi que disse que essa digressão era necessária? O mais sensato é voltarmos à história. Podia-se dizer que era um sujeito feliz, vivia bem para os padrões de um trabalhador de classe "média"! Não tinha outras ambições, pensava que se melhorasse muito, poderia estragar. Por essa razão, continuava seguindo sua vidinha pacata na pequena cidade onde morava, sem maiores aborrecimentos! Cumpria essa rotina sem qualquer remorso ou ressentimento!
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Naquela manhã, não fora diferente. Repetira tudo que fizera ao longo daqueles anos. Cumprimentou, como sempre fazia, a recepcionista da empresa em que trabalhava e seguiu para sua sala. Sentou-se à mesa de trabalho, não sem antes contemplar a fotografia que estava sobre ela em que se via a mulher, o filho e ele; sorriu, para si mesmo, chegara à conclusão, naquele instante, que não tinha o que reclamar da vida, tinha tudo o que queria! 
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Sentira algo estranho ao longo daquele dia, especificamente, percebia que as horas estavam mais vagarosas. Não via o momento de voltar para casa, uma inquietação incomum o perturbava, um aperto no coração que não saberia explicar qual a razão. Chegando a casa, não conseguira estacionar onde sempre o fazia, outro tomara-lhe a vaga, pensou que poderia ser uma visita inesperada. Ao colocar a chave na fechadura teve a primeira surpresa: a porta não se abriu. Qual teria sido a razão? Tocou a campainha e recebeu no rosto a segunda surpresa, daquele dia fatídico, a mulher que vivera com ele por tantos anos não o reconhecera, assim como seu filho, e para piorar mais ainda as coisas, havia outro homem na sua sala de jantar! Aquilo mais parecia um pesadelo!? Será que aquela situação surreal estava acontecendo mesmo ou era alguma piada de muito mal gosto? Entrou em desespero e começou a berrar a plenos pulmões todos os palavrões que conseguiu se lembrar! Com todo esse alarido, não era para menos, atraiu não só a atenção dos vizinhos, como também dos homens da lei! A família, da qual fizera parte em algum momento da sua existênncia, pelo menos era o que ele achava, chamara a polícia com medo da proporção que o caso pudesse tomar! Não, aquela fastasmagoria não estava acontecendo na vida dele! Exaurido e esmagado por todos esses acontecimentos, quase sem perceber, adormeceu no carro, com a vaga impressão que aquela seria a mais longa das noites!
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Foi a primeira manhã, depois de tanto tempo, em que o filho não se encontrava ao seu lado. Entrara apressadamente na empresa e teve mais uma das muitas surpresas que as últimas 24 horas lhe reservara: a recepcionista não o reconhecera. E mais, havia alguém ocupando seu espaço de trabalho, e tinha consciência que não era ele, mas se vestia do mesmo modo! A fotografia continuava no mesmo lugar, mas sem a sua presença! Será que a vida lhe escorrera entre os dedos e ele sequer percebera? Parecia-lhe que perdera a existência no vão das horas! Fora enxotado do lugar que trabalhara por tanto tempo como um cachorro sarnento! Em apenas um lance perdera tudo: a família, o emprego e a dignidade! Precisava urgentemente de um espelho para ver o que os outros viam! Não obstante o que viu o desesperou. Estranhamente não havia nada, onde deveria estar a sua imagem! Então essa era a crua verdade: ele deixara de existir e sequer percebera o ocorrido? Sentiu um calafrio lhe percorrendo a espinha ante essa verdade aterradora. Sentia-se como se estivesse sob um mar de ferroFez-se, então, a pergunta mais excêntrica que alguém poderia se fazer: "é possível morrer sem que tenhamos consciência de que isso aconteceu?"... 
*Inspirado no clipe da música Crystal Ball da banda Inglesa Keane     

terça-feira, 20 de outubro de 2009

Rio de Janeiro: cenas que Fernando Meirelles não mostrou...



"A vida imita a arte", esse talvez seja o clichê mais clichê que conhecemos, contudo, por motivos desconhecidos, reaparece a todo instante com uma força avassaladora. Quando pensávamos que vivendo num país com as peculiaridades que tem o Brasil, nada mais poderia nos surpreender, que as barbaridades já tinham chegado aos limites do possível, eis que somos presenteados com cenas que poderiam fazer parte de quaisquer desses filmes violentos onde a quantidade de balas disparadas é superior a qualquer diálogo entre as personagens, aqueles onde os corpos tombam perfurados a cada segundo como se isso fosse a coisa mais natural do mundo! Juro que quando vi o helicóptero da policia do Rio de Janeiro em chamas, pensei que aquilo era cena de cinema! É certo que no ano passado vimos, por ironia, também de um helicóptero, "bandidos" sendo abatidos nos morros por atiradores de elite do Bope em rede nacional! Ou seja, é a banalização gratuita da violência nesse nosso vil cotidiano. É preciso que se diga que o que está acontecendo no Rio de Janeiro é a parte mais visível do grande iceberg que é a violência urbana e que aqueles que são responsáveis pela direção do Estado fingem que pode ser resolvida com helicópteros blindados, mais policiais, mais armamentos, com isso não é necessário ir à raiz da questão, afinal, já resolvemos todos os outros problemas como a fome, a educação, a saúde, não nos esqueçamos que somos um país olímpico e que o Rio de Janeiro é a sua sede, vibremos com a possibilidade das futuras medalhas e as lágrimas que virão!
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Quando falei na postagem "Vida de Cachorro" que aquele mendigo não iria assistir nem a copa nem a olimpíada, é bem provável que aquela história de ver "pelo em ovo" tenha vindo às mentes de algumas das pessoas que admiro, ora, tínhamos acabado de ver o "chora Brasil" revivido com toda a intensidade que mídia conseguiu nos brindar! Ficamos todos imbuídos do espírito olímpico, como foi emocionante ver em rede nacional o discurso do chorão mor do país e a vibração do povo nas ruas e nas suas casas quando o nome da cidade vitoriosa foi anunciado. Esqueceram de dizer aos traficantes que tiroteio e mortes maculam a imagem da cidade! Tem coisas que ainda me espantam, por estarem no terreno do nonsense. As cenas que possibilitaram a vitória do Brasil, diga-se o Rio de Janeiro, como sede dos jogos foram estonteantes, contudo a pobreza e miséria foram omitidas, totalmente descartadas! O que fez Fernando Meirelles na direção daquelas cenas é digno de Oscar. Não faltou, como já é de praxe, a masturbação global que encheu todas as medidas, mas diria um grande sábio: "isso faz parte do grande circo do qual somos os palhaços!" Não, não se parece com o pão e circo romano, é muito pior, mas deixa isso para depois, agora o momento é de vibração com nossas futuras medalhas: ouçamos nosso querido Galvão Bueno nos dizendo qual é o momento que devemos gritar a plenos pulmões que somos campeões olímpicos, não é mesmo?!
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Ainda estávamos embriagados com o orgasmo da Olimpíada 2016 ribombando em nossos ouvidos, quando fomos "surpreendidos" com as imagens cinematográficas da guerra do narcotráfico que, é preciso que se diga, não está restrita à cidade do Rio de Janeiro. Para se ter uma idéia, ainda que pequena do que está acontecendo, basta dar uma olhadinha nas páginas policiais das grandes e pequenas cidades que compõem o universo brasileiro, ainda que seja confortável para algumas cidades que os holofotes estejam voltados para os cariocas, isso dá a impressão que "algumas ilhas" são seguras: essa violência é de todos nós, está espalhada pelos quatro cantos do país! Na verdade, o que vem acontecendo no Rio de Janeiro, foi deliberadamente omitido do pacote olímpico, as cenas escolhidas mostravam alegria, carnaval, belas mulheres, gente feliz pela ruas, um lugar ideal para a realização de eventos de grande porte, tudo isso contrasta com as cenas recentes dos policiais militares em chamas! As imagens idílicas mostradas pelas televisões que vão ganhar dinheiro com os jogos foram "apagadas" pelo "fogo" dos donos da cidade, Hoje ninguém quer mais fazer turismo na cidade maravilhosa, com seus encantos mil, que coisa estranha, não? O mais curioso é que a polícia ao invés de admitir que as coisas estão fora de controle e que a realização dos jogos deverá ser, como foi o Pan, como será a copa do mundo, uma operação de guerra, para que não ocorra nenhuma tragédia, fica buscando justificativas INJUSTIFICÁVEIS! Os traficantes comandam o crime de dentro das prisões, que estranho paradoxo! O pior é que esse filme vem se repetindo, por estranha ironia, o mesmo Fernando Meireles, em Cidade de Deus, tentou mostrar as raízes dessa história! É bem provável que mais uma vez, para a segurança dos jogos, o governador do Rio de Janeiro retome o discurso da pena de morte, pois, encurralado como está, já sabe que prender os "bandidos" em PRESÍDIO DE SEGURANÇA MÁXIMA já não é mais a solução...

sexta-feira, 16 de outubro de 2009

Castiga-me infinitamente...*

Essa foi a frase que ela disse instantes antes do encontro extraordinário entre aqueles dois "corpos estranhos"! Cada sílaba pronunciada por ela estava carregada de luxúria, desvario, lascívia, busca do acme do ato sexual; naquele momento, a excitação invadira todos os pelos e poros do corpo dele, uma sedução muito mais que arrebatadora, verdadeiramente alucinante! Neste instante, ele a queria com intemperança! E para o bem dele, ela também o queria com toda agudeza que aquelas sílabas anunciavam! Na verdade, desejavam-se e por isso tornaram-se amantes pela eternidade! Queriam se possuir pela infinitude das noites vindouras! Ironicamente, ecoara o som de palavras em ouvidos moucos, mas ainda assim, aqueles ouvidos, como que por milagre, ouviam excitados o som daquelas palavras que não cansavam de pedir: "Castiga-me infinitamente!"
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Estranhamente, aqueles sons foram pronunciados em outra língua, não, não era a língua dele, ela se expressava em magiar! Então, como fora possível afirmar que essa era a precisa tradução na língua dele? Quanto a isso, o poeta já dissera que navegar é que era preciso! Ah, que elemento estranho é o corpo! Mesmo sem falar aquela língua, entendia facilmente a língua que o outro corpo exprimia e na língua do corpo, as palavras repercutiam carregadas de desejos, gostos, carícias, brutos amores, doces suores, orgasmos infindos; alguém poderia traduzir com palavras o êxtase que aqueles corpos exalavam? Essa era a indagação que o poeta se fizera, chegando à conclusão que a verdadeira poesia desabava por dentro, era como um livro, cuja essência nada mais é que o contato íntimo entre dois amantes arrebatados!...

*Inspirado em cena do filme Budapeste de Walter Carvalho que se referenciou no livro homônimo de Chico Buarque de Holanda

terça-feira, 6 de outubro de 2009

Vida de cachorro...

Florianópolis não deixa de ser uma cidade "modelo" para aqueles que estão fora dos seus muros! Trata-se de um grande cartão postal, o melhor IDH do Brasil! São paisagens deslumbrantes, paradisíacas que deixam qualquer um boquiaberto diante de tanta beleza, principalmente quando o velho sol se derrama sobre elas. Nada mais óbvio, resmungariam aqueles que a conhecem de fora ou como turista! Quem está longe só percebe o que o cartão postal pode mostrar e o turista não pode ver o que os que vivem por cá vêem, sob o risco de não mais voltar; por esse e outros motivos, as mazelas são escondidas para que o visitante não perceba a irrealidade que o cerca! Pergunte aos manezinhos que moram nos morros que circundam a cidade para saber o que acham dessa visão idílica que os outros têm da cidade que eles moram! O fato é que quem vem morar aqui, como é o meu caso, em pouco tempo, descobre que existe o REAL e a imagem que é vendida para consumo externo, não nos esqueçamos que a propaganda ainda é a alma do negócio!
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Como é uma cidade para "inglês admirar", à primeira vista, não há mendigos em suas cercanias! Mas se por um infeliz acaso, aparece algum, mas que rapidamente desaparece como num "passe de mágica", todavia como mágica é ilusionismo, sabe lá Deus o que fazem com os indigentes que insistem em se tornar visíveis! Dias desses, eu e uma amiga caminhávamos numa das ruas do centro, quando vimos um sujeito cercado por caixas de papelão e mais alguns trecos! Ficamos surpreendidos por ele se encontrar justamente onde os que zelam pela imagem da cidade não desejam, um morador de rua em plena área nobre, pois se eles não "existem" em espaços menos visitados, imagina justamente onde o cartão postal é mais visto! Acho que é necessário fazer um esclarecimento. Como estamos vivendo em tempos de pasteurização da vida, o eufemismo foi incorporado ao discurso cotidiano, o que antes era indigente e/ou mendigo, palavras nada sonoras, hoje é morador de rua. Fala a verdade, como pode alguém morar na rua? Entendo que isso não passa de uma suavização da miséria. Você pode me perguntar: "é possível suavizá-la?" Neste contexto, acrescente as temperaturas que ocorrem neste período do ano. Momentos em que a previsão era de 10º, mas a sensação térmica beirava os 3º! É insano afirmar que alguém mora na rua sob tais condições meteorológicas, na verdade, pessoas morrem na rua! Mas o fato é que, por uma falha no sistema, lá estava, maculando a paisagem, um indigente sob os céus de Florianópolis!
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Em uma de suas canções, Zeca Baleiro diz que "há mais solidão num aeroporto do que num quarto de hotel barato." Os humanos mesmo tão próximos, estão cada dia mais afastados uns dos outros! Nesta solidão nossa de cada dia, entra em cena o melhor amigo dos humanos, o cachorro, que em conseqüência disso, passou a ter uma vida melhor do que a daquele morador de rua, citado no parágrafo anterior. Como somos seres solitários, os idosos mais ainda, o cão é o companheiro de todas as horas, ter um cão é ter companhia e ponto! É certo que com a mudança de status do cachorro, há toda uma indústria à sua disposição o que deve causar uma inveja danada ao mendigo herói dessa narrativa. Existe uma gama de profissionais que se dedicam 24 horas por dia para o bem-estar do cão, sob todos os pontos de vista. Há que se ter cuidado com seus problemas afetivo-emocionais, depressão, seu cansaço, isso e mais aquilo! Ele precisa passear, estar vestido adequadamente, vejam aonde chegamos, até roupa específica para cachorro existe, como também, hotel para cachorro! É isso mesmo que você está pensando: desumanizamos os humanos, secundarizamos sua importância e humanizamos os cães, tudo o que alguns humanos não têm, incluindo aí aquele indigente catarinense, os cachorros têm em excesso! Antes que associação protetora dos animais resolva me processar, quero dizer que não sou contra esse tratamento VIP dado aos animaizinhos de estimação. Vai dizer que vocês não acham que eles ficam bonitinhos dentro daquelas roupas ridículas? O que me causa estranhamento é que não dispensamos tratamento igual aos nossos iguais, tal e qual nosso herói indigente, morador entre caixas de papelão, sob baixas temperaturas! Pessoas como o sujeito visto entre caixas de papelão, numa esquina da cidade, estragam a magia do lugar! Uma coisa é certa, nosso herói mendigo não vai ter dinheiro, embora tenha vestido a camisa dos Teixeiras e Nuzmans, para ver a copa do mundo em 2014 e nem a Olimpíada em 2016, afinal, ele não tem pedigree, na hierarquia dos cachorros, não passa de um cão vira-latas pobre e miserável, cheio de pulgas, mas que ainda assim torceu desesperadamente para que o Rio de Janeiro fosse a cidade escolhida para sediar os jogos olímpicos, cantando a plenos pulmões: "cidade maravilhosa, cheia de encantos mil, cidade maravilhosa, coração do meu Brasil...