domingo, 4 de fevereiro de 2007

Boca de Lixo

Há entre os poemas preferidos de Manuel Bandeira, um que chama à atenção pela força da metáfora usada para se referir à espécie humana. A partir de uma gradação descendente, às avessas, que fique claro, nos coloca frente a frente com uma imagem que deveria nos chocar até o último fio de cabelo, ele diz: "Vi ontem um bicho, Na imundície do pátio, Catando comida entre os detritos, Quando achava alguma coisa, Não examinava nem cheirava, Engolia com voracidade. O bicho não era um cão, Não era um gato, Não era um rato. O bicho, meu Deus, era um homem". Hoje à tarde, assisti a um documentário chamado Boca de Lixo, de Eduardo Coutinho, e instantanemente o poema me veio à memória, nas imagens apresentadas vemos a forma perversa como tratamos aos que não têm muitos recursos, sei que dizer isso é usar de eufemismo, na verdade, esses "cidadãos" estão na condição de miseráveis. O assustador é que aqueles que estão vivendo dentro, é isso mesmo, do lixo, acabam por aceitar com resignação essa situação. Como se fosse obra e graça do Espírito Santo!...passadas algumas horas, não consigo esquecer daquelas imagens! Eu sei que muitos podem dizer, mas isso é comum em todos os Lixões espalhados pelo Brasil, por que a surpresa? Pode-se dizer que isso já faz parte do cotidiano, já incorporamos essas aberrações! É justamente aí que encontro o problema. Um certo nazista disse um dia que uma mentira repetida diversas vezes se tornaria verdade! Fazendo uma analogia com as imagens, diríamos que vemos repetidamente cenas em que homens, mulheres e crianças, no meio lixo, comem lixo, literalmente, que já não nos indignamos, nos tornamos insensíveis! É normal e comum! Vejo uma única diferença entre o poema "O Bicho" e a vida concreta que estamos vivendo. No poema, Manuel Bandeira está boquiaberto, estarrecido, vilipendiado, humilhado com a condição sórdida a que chegamos, no nosso caso, já não sentimos nada...

2 comentários:

wager matias disse...

É verdade prof. as "coisas" estão sendo naturalizadas,no entanto, como vc mesmo diz indignar é pouco, mas acredito que seja o primeiro passo .Por isso temos muito a contribuir.Parabéns pela bela reflexão.

Ricardo Pereira disse...

de certa forma nós já não separamos o lixo que produzimos do lixo que vamos transformando a vida, seja daqules miseráveis no lixão, seja de nós miseráveis que vamos perdendo qualquer sensibilidade... estamos cada vez mais precisando de uma reciclagem.