quarta-feira, 31 de janeiro de 2007

Tiranos

Um jovem cineasta, Alexandre Stockler,(dirigiu Cama de Gato) disse recentemente que temos predileção por tiranos! Fiquei me perguntando se tinha algum sentido o que ele dizia. Os argumentos eram, de algum modo, convincentes. Citou alguns exemplos, entre eles o de Getúlio Vargas. Minha memória afetiva entrou em ação e me reportou, quase que imediatamente, à casa dos meus avós paternos, lá, na sala de jantar, estava a fotografia do "velho". Se olharmos para a trajetória de Getúlio, veremos que ele implantou o Estado Novo, na verdade, um golpe, apoiou os nazistas que mataram negros, judeus, ciganos e tudo o que era considerado "impuro" que lhes apareceu pela frente! A guerra acabou e com ela a Era Vargas se finda, pelo menos era o que se anunciava. Na realidade, não foi isso que aconteceu, mesmo tendo apoiado o que houve de mais cruel e desumano no século XX, se é que se pode "mensurar" bárbarie, Getúlio Vargas ganha as eleições e volta nos braços do povo! E é, justamente, neste momento que a frase do cineasta me vem à memória, será que preferimos os tiranos à liberdade? É nossa sina amar os que nos oprimem? Uma coisa é certa: as respostas exigem um vasculhar das nossas intenções mais pueris, quem sabe a carta testamento, deixada por Vargas, não possa nos ajudar a sair desse labirinto e, quiçá, explicar esse estranho vaticínio?

Carta Testamento
Mais uma vez as forças e os interesses contra o povo coordenaram-se e novamente se desencadeiam sobre mim. Não me acusam, insultam; não me combatem, caluniam, e não me dão o direito de defesa. Precisam sufocar a minha voz e impedir a minha ação, para que eu não continue a defender, como sempre defendi, o povo e principalmente os humildes.

Sigo o destino que me é imposto. Depois de decênios de domínio e espoliação dos grupos econômicos e financeiros internacionais, fiz-me chefe de uma revolução e venci. Iniciei o trabalho de libertação e instaurei o regime de liberdade social. Tive de renunciar. Voltei ao governo nos braços do povo. A campanha subterrânea dos grupos internacionais aliou-se à dos grupos nacionais revoltados contra o regime de garantia do trabalho. A lei de lucros extraordinários foi detida no Congresso. Contra a justiça da revisão do salário mínimo se desencadearam os ódios. Quis criar liberdade nacional na potencialização das nossas riquezas através da Petrobrás e, mal começa esta a funcionar, a onda de agitação se avoluma. A Eletrobrás foi obstaculada até o desespero. Não querem que o trabalhador seja livre.

Não querem que o povo seja independente. Assumi o Governo dentro da espiral inflacionária que
destruía os valores do trabalho. Os lucros das empresas estrangeiras alcançavam até 500% ao ano. Nas declarações de valores do que importávamos existiam fraudes constatadas de mais de 100 milhões de dólares por ano. Veio a crise do café, valorizou-se o nosso principal produto. Tentamos defender seu preço e a resposta foi uma violenta pressão sobre a nossa economia, a ponto de sermos obrigados a ceder.
Tenho lutado mês a mês, dia a dia, hora a hora, resistindo a uma pressão constante, incessante, tudo suportando em silêncio, tudo esquecendo, renunciando a mim mesmo, para defender o povo, que agora se queda desamparado. Nada mais vos posso dar, a não ser meu sangue. Se as aves de rapina querem o sangue de alguém, querem continuar sugando o povo brasileiro, eu ofereço em holocausto a minha vida.

Escolho este meio de estar sempre convosco. Quando vos humilharem, sentireis minha alma sofrendo ao vosso lado. Quando a fome bater à vossa porta, sentireis em vosso peito a energia para a luta por vós e vossos filhos. Quando vos vilipendiarem, sentireis no pensamento a força para a reação. Meu sacrifício vos manterá unidos e meu nome será a vossa bandeira de luta. Cada gota de meu sangue será uma chama imortal na vossa consciência e manterá a vibração sagrada para a resistência. Ao ódio respondo com o perdão.

E aos que pensam que me derrotaram respondo com a minha vitória. Era escravo do povo e hoje me liberto para a vida eterna. Mas esse povo de quem fui escravo não mais será escravo de ninguém. Meu sacrifício ficará para sempre em sua alma e meu sangue será o preço do seu resgate. Lutei contra a espoliação do Brasil. Lutei contra a espoliação do povo. Tenho lutado de peito aberto. O ódio, as infâmias, a calúnia não abateram meu ânimo. Eu vos dei a minha vida. Agora vos ofereço a minha morte. Nada receio. Serenamente dou o primeiro passo no caminho da eternidade e saio da vida para entrar na História.

(Rio de Janeiro, 23/08/54 - Getúlio Vargas)

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