sábado, 20 de março de 2010

Lugar-comum...

Depois de quase sucumbir a um Acidente Vascular Cerebral, o velho professor não sabia, ao certo, de onde retiraria forças para mais uma empreitada. Nas nossas existências, dissera a si mesmo, depois da tempestade, é sempre bom ouvir Rô Rô dizer: "a vida é bela, só nos resta viver." Por isso, decidira que iria buscar novos desafios para iluminar a vida nova. Some-se a isso a sorte (será que ela existe mesmo?) de ter conseguido escapar ileso, sem nenhuma seqüela daquele transtorno neurológico. A medicina enfatizara que era algo raro para quem recebe no colo um AVC. Percebendo sua disponibilidade para emoções radicais, o médico que o curara fora implacável: "nada de excessos nos próximos dois anos, compreendeu?!" Sem esconder sua ansiedade, e meio a contra-gosto, seguiu à risca as sábias recomendações do velho esculápio! É verdade que no início daqueles "longos" dois anos teve que aturar perguntas de alguns chatos de galocha, que em outros tempos não causaria nenhum "dissabor", mas naquele instante, falar de corda em casa de enforcado, era uma total falta de sensibilidade. Houve momentos que o velho docente, para evitar o lugar-comum, sentira vontade de entortar a boca, a perna ou o pé, para não ouvir: "você está bem mesmo?" Era compreensível, afinal, o cara escapara incólume daquilo que era conhecido popularmente como derrame, mas ouvir isso a todo momento enchia o saco de qualquer cristão e também o do idoso professor! 
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Dois anos se passaram e o velho preceptor recuperado de todos, ou quase todos, os seus fantasmas resolvera fazer um longo vôo! Decidira que iria respirar novos ares, conhecer pessoas diferentes, em linhas gerais, sair um pouco do lugar em que vivera por mais de dez anos para aprofundar estudos! Quem sabe não iria para o sul fazer o doutorado? Percebera no gesto, não uma fuga, mas uma necessidade "espiritual". Dito e feito, lá se fora o velho escolástico em busca de "mares nunca dantes nevegados", como bem dissera o bardo lusitano! Seriam 4 anos para se revigorar, viver outros ambientes, conhecer outros sotaques, embora o velho mestre tivesse consciência que não tinha nenhum, e o que não poderia esquecer: escrever uma TEsE! Eis que surge o primeiro contratempo enfrentado por nosso "herói": um frio intenso, logo no primeiro ano a temperatura chegou aos 4 graus, também pudera, o sujeito sentia frio numa cidade cujas temperaturas beiravam os 40 e poucos graus! Mais que rapidamente, logo veio o segundo contratempo da série. Na primeira visita que fizera ao seu local de trabalho, no recesso acadêmico, seis meses depois, ouviu a pergunta que o perseguiria pelos próximos anos a todo momento que encontrava um velho conhecido ou um conhecido novo: " e a TEse, já terminou?" O quê? Seis meses depois?
Não, aquilo não estava acontecendo com ele! Percebera enraivecido que todo assunto, qualquer conversa, só se falava na "mardita"! Todos queriam saber se já estava concluindo a TeSE, uns mais ousados perguntavam quando seria a defesa! É óbvio que a situação só foi  piorando e o nosso velho professor começara a mudar literalmente de calçada todas as vezes que apontava, lá adiante, alguém que conhecia. Sim, porque havia momentos que queria saber de qualquer coisa menos que tinha uma tESE à espreita no meio do caminho, como a pedra de Drummond! Começara a sentir saudade dos chatos de galocha que perguntavam se ele estava bem mesmo. Pelo menos, naquela situação, poderia entortar a boca ou qualquer um dos membros e o chato se calava por pena ou dó, mas com a TESe isso jamais acontecia, todos queriam saber como estava a saúde da criatura! Precisamente ontem, o velho escolástico resolvera ir a um Seminário. Chegando ao campus, avistou, ao longe, uma professora muito querida que já fazia algum tempo não via. Sorrindo se aproximou feliz por reencontrá-la. Após os cumprimentos habituais, eis que recebeu, de chofre, ricocheteando em pleno rosto, o som daquelas palavras que não o abandonaram um só instante nos últimos tempos: "E a TESe, já terminou?"...Não se sabe ao certo o que os olhos do velho professor responderam, o fato é que na despedida, percebera que o encantamento se rompera definitivamente, porque aquele lugar-comum conseguira se impor em todas as frestas, em todos os interstícios obstaculizando os relacionamentos, provando que, em relação à tEse, somos todos iguais...

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