É sempre bom relativizar, penso que essa é uma premissa interessante. Não se deve a partir daquilo que vivenciamos afirmar que nossa experiência pode ser transposta para beltrano ou para sicrano. Muitas vezes o "desastre" termina sendo uma verdadeira salvação para uns, mas não para outros. Se prestarmos atenção no "pós-acidente", os que escaparam, dependendo das sequelas, podem estar muito mais "felizes" com o que lhes aconteceu do que antes do ocorrido! Em realidade, estou dizendo tudo isso porque ter tido um ave/avc não foi "brincadeira de criança", mas estranhamente me fez um bem danado! Embora possa parecer absurdo, fiquei muito mais forte, e, o que é mais engraçado, não apenas por ter escapado, mas por ter aprendido que poderia viver numa "voltagem" bem mais baixa do que aquela em que vinha operando; ao dizer isso, de novo, sinto uma vontade imensa de rir, é que me vem à memória a frase dita por uma professora numa reunião departamental: "esse rapaz tem que ter muito cuidado, se continuar assim com essa impetuosidade (você tem razão, a impetuosidade fica por minha conta), pode a qualquer momento ter um ataque cardíaco!" Confesso que, na hora, ainda irascível, associei a criatura a uma ave de mau agouro e disse-lhe um monte de impropérios, para se ter uma ideia, nem da mãe da referida tive pena, desci o sarrafo, é óbvio que tudo isso dentro da minha cabeça, não podia perder de vista o decoro acadêmico!
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Muitas vezes, sinto-me tolo por não ter dado ouvidos às sábias palavras da professora, se o fizesse teria me poupado de muito sofrimento, mas grande parte das vezes, não damos a devida atenção ao que nos é dito pelos mais experientes. A presunção é um mau remédio, o fato é que, mesmo com essa "premonição", não me permiti ser menos "arrogante", continuei levando tudo "a ferro e fogo", como bem dizia minha velha mãe. O ruim é que as palavras da professora não eram uma figura de linguagem, o ataque cardíaco apenas mudou de nome e me foi apresentado como acidente vascular cerebral! Passei seis longos dias sem ver a luz, sem saber o que tinha acontecido e qual a razão de acontecer justo comigo. Observe que reclamo, mesmo sem ter tido uma sequela sequer, enquanto um amigo passou pela mesma experiência e ganhou como "brinde" a perda do olfato e do paladar! Você deve estar dizendo: "como esse sortudo é mal agradecido!" Reconheço, você tem toda razão. Olhando para trás, observo que depois de 10 anos, ainda têm coisas que não deveriam, mas ainda me tiram do sério, o que, sinceramente, não deixa de ser uma estupidez, porque, depois do que passei, os conselhos da jovem senhora não deveriam em nenhum instante sair dos meus pensamentos!
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Porém uma coisa é certa, a idade nos dá algo, uma certeza e, por que não dizer, uma "leve" depressão que aos 20 e poucos anos é impossível; nessa idade pensamos que somos indestrutíveis, que seremos eternamente jovens, contudo quando chega a maturidade tudo isso nos é tirado sem nenhuma compaixão ou aviso. Mas saiba que o olhar juvenil não é algo ruim, muito pelo contrário, é muito bom! Para que envelhecer tão cedo? Para que a certeza da morte quando a vida está apenas se despindo? Dez anos depois do AVC, sei que tenho que agradecer não só por ter sobrevivido e sem problemas que são inerentes a essa doença, e sim por ter conseguido "desacelerar", o que me ajuda a não enveredar por desvios tolos e, principalmente, pela percepção dos meus limites! Além de tudo isso, ganhei dois presentes inefáveis, ainda que paradoxalmente use as palavras para enunciá-los! Tenho uma neta que tem um tio mais novo que ela: Karl e Laura nasceram para reafirmar que viver pode não ser um fardo, é bom ser avô e pai velho! Tomara que não precisem sofrer, como eu, para que percebam que não é necessário antecipar as coisas e brigar por tudo e por nada, que não é preciso queimar etapas e nem envelhecer antecipadamente...
5 comentários:
Adorei o texto, Gomes. Ainda estou a refletir com as verdades ditas de forma tão bela e sensível. Penso ser fantástica a capacidade que temos de aprender com os acontecimentos e mudar nossa forma de ser, ver e se relacionar... Felizmente, podemos relativizar! rs
Gomes, Aline Machado! Quando você pediu o endereço do blog, pensei que nada mais era que cortesia para com o (suposto,rs)dileto amigo, mas sua presença por cá, com ou sem convite, tem sido muito bacana, não sei por que lembrei de uma menina, em sala de aula, dizendo;"isso não seria uma cacofonia?" É, parece que aquela "menina" continua viva, não por causa de ter gostado do texto, mas por continuar se "arriscando sempre"...e isso é uma boniteza, diria Paulo Freire.
Eu tenho um vinil velho que foi transformado em relógio, nele está escrito, “VOCÊ TEM TODO DIREITO DE CURTIR CADA SEGUNDO, MINUTO, HORA, DE SUA VIDA, SEM RESERVAS. A CELEBRAÇÃO DA DANÇA DO TEMPO ROLA DENTRO DO RITMO DE CADA UM. DESACELERE !” Lembrei!
Gostei da lembrança, Karl...!!!
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